O Egipto é um país de passagem.

Tudo ali passa, tudo ali repousa...Tudo para ali emigra, até os pássaros, porque tudo o que tem asas ... foge para o velho Egipto."

- Eça de Queiroz - O Egypto, 1869

Livro "Odisseia Egípcia"

 (por Joana Saahirah)

 

 

“A noite caíra, leve, sobre nós, como só as noites de Verão no Cairo caem. Quem entra pela noite dentro, acordado, no Egipto, é apresentado ao gosto indescritível da Eternidade, do tempo fora do tempo. Uma brisa quente e espessa percorre-lhes a pele, um dedo invisível acaricia-lhes a alma, como se o próprio deserto invadisse a cidade e ali decidisse enternecer todos os seus habitantes, oferecendo-lhes um pouco de céu numa bandeja.

 

Os meus companheiros de café esqueceram-se de mim por alguns momentos e eu fiquei livre para os observar, ao contrário do que costumava acontecer.

 

O sr. Nabil, o dono de um café igual a milhares de outros cafés de rua  - akhwa baladi - espalhados pelo país, trouxe-me um sahlab,  bebida tradicional à base de leite, açúcar e frutos secos, para acomodar as emoções partilhadas no decorrer de um concerto da “Senhora” (El Sit), a voz do Oriente, Om Kolthoum. 

 

 - Ya ra bena khalik, ya ustaz Nabil. - Agradeci-lhe, no meu Árabe orgulhosamente fluído, ao que ele respondeu acenando que sim com a cabeça e torcendo a ponta do avental. Peguei no copo de sahlab com as duas mãos, deixando-me aquecer pelo calor que dele emanava, e levei-o perto do nariz, inalando o aroma adocicado da minha bebida favorita. 

 

Embora o sahlab seja considerado uma bebida de inverno - demasiado densa, doce e quente para os Verões escaldantes do Egipto -, eu adorava bebê-la fora de época. Em todas as épocas. À semelhança da doçaria egípcia, bolos e fritos sobrecarregados de mel, açúcar, natas, frutos secos e outras iguarias, todas elas pesadas e inesquecíveis, o sahlab lembra-nos da razão pela qual tantos estrangeiros se sentem atraídos pelo Egipto e ali acabam por ficar apesar de todas as suas falhas e idiossincrasias.  

 

Dou o primeiro gole na bebida que seguro entre as mãos e suspiro de prazer - o creme branco, uma espécie de arroz doce sem arroz, pintado aqui e ali por pistachios, amêndoas, coco e canela, conforta-me a partir de dentro.  

 

Segue-se um gole. E outro. E dentro de mim, a certeza de que tudo ficará bem. Tudo está bem ainda que não pareça. 

 

Limpo os resquícios de creme que agora me contornam a boca e volto-me para uma outra indulgência, outro voo: Om Kolthoum, emitida a partir do rádio do Sr. Nabil, uma antiguidade empoeirada do tempo de Abdel Nasser orgulhosamente exibida numa das prateleiras do café.  

 

Este abandono físico face aos prazeres da música é algo que caracteriza os egípcios. A música não acontece “fora” do ouvinte mas “através” dele, por dentro do seu corpo e da sua alma. Quem ouve, bebe a música, come-a, absorve-a ao ponto de nela se fundir por osmose; permite que ela lhe entre nos ossos, no sangue, no que ainda nele é humano.

 

Observo como incham de excitação as veias do senhor Farouk, homem pachorrento e de ar doce que lia o jornal e se queixava das esposas (três, um fardo que assumia com a resignação de um obediente mártir); como o senhor Mamdouh trazia lágrimas presas por uma corda envelhecida, à beira dos olhos, e como um engraxador de sapatos que por ali parou em descanso se encostou à parede do café, com o pescoço relaxado - os músculos distendidos, por momentos, as mãos abertas -, o peso dos ombros pendurado num cabide invisível, olhos cerrados em meditação, o sangue a regressar-lhe às faces agora rosadas. 

 

 A música ganhava forma nestes homens e em mim. Ninguém aplaudiu, no final do concerto, porque seria como aplaudir a nós próprios. No Egipto, existem muitas hierarquias e separações mas no campo da música, elas desaparecem - a música e o ouvinte são um só.

 

O romance de amor -  desinteressado e puro - que estes homens nunca viveram é temporariamente real enquanto o concerto de Om Kolthoum dura. Uma noite de prazeres tão físicos quanto da alma ficaria por ali, a pairar em formato de holograma, quando o café fechasse, num desfile de fantasmas a pedir atenção, desejos que esses homens não ousam exprimir por palavras, enquanto eles regressavam a casa, às suas vidas previsíveis, estéreis e de fachada.  

 

Os Portugueses criaram a palavra “Saudade”, termo intraduzível que define a essência da sua identidade. Os Egípcios criaram o “Tarab”, palavra igualmente intraduzível noutros idiomas, conceito que se ultrapassa a si mesmo em significado, distante e além do domínio da linguagem racionalmente entendida. Viagem cujo início se situa nos ouvidos e daí se espalha a todo o corpo, até transbordar pelo coração. O “Tarab” pode ser definido de várias formas - evasão, transcendência, nível superior de união atingido entre um artista e o seu público - mas a sua manifestação não é do domínio das palavras, como tantas coisas que tento expressar neste livro. 

 Desafio: encontrar palavras para exprimir o que está além do domínio das palavras. 

 

Humildemente, aproximo-me dessa indefinição: milhares de pessoas rendidas aos concertos de Om Kolthoum, no seu tempo. Como agora.

Pedindo bis, caindo, desmaiando, reanimando-se para um dia mais luminoso, a esperança de que o coração não esteja totalmente morto.

 

Eis o fenómeno que se repete sempre que alguém canta ou dança com a alma, conseguindo levar o seu público nessa barca de Noé, atravessando oceanos e céus, verdade e imaginação no mesmo saco do Louco. 

 

A experiência do Divino – a que, comummente se chama Deus – acontecendo, em directo, dentro de nós. Eis a Sacralidade da Música e da Dança Egípcias, eis a razão porque ambas são temidas por todos os poderes políticos e religiosos que não pretendem abrir mão do domínio que possuem sobre as gentes.

 

Om Kolthoum irrompeu numa nota exaltada e estendeu-a até ao Infinito. “Il nashwa", mais uma palavra para “extâse”, delírio, abandono do “eu/ego”. A dádiva do Nada. O Grande Orgasmo - pessoal e universal. Através da Música e da Dança, o Um revela-se o Todo: Sufis e hereges, farinha do mesmo saco; pecadores e santos, sangue do mesmo sangue; reis e mendigos, os primeiros, a sombra dos segundos. 

Regressei a casa, de cabelos e olhos secos, levando jóias na mala.

 

-Onde estiveste? – Perguntou-me o Jamal, desconfiado, farejando o aroma a tabaco e a homens em mim.

 

-Por aí…Parei num café de rua, nada de especial. - Respondi, sorrindo por dentro." 

 
 
Excerto do livro "Odisseia Egípcia"

Um pouco mais sobre o universo do Livro

"Odisseia Egípcia"

Um pouco sobre o percurso de Joana Saahirah no Egipto

 

Excerto de Programa de Televisão "Portugueses do Mundo" onde um pouco da vida de Joana Saahirah no Egipto é revelada.

 

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Duas palavras Árabes que todos os praticantes de Dança Egípcia devem conhecer

 

Neste vídeo, Joana Saahirah partilha duas palavras-chaves na cultura, na música e na dança egípcias e o que elas significam.

 

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